Sedimento super premium

Tem coisas que só passam a ter valor depois de bem sedimentadas no tempo. Como petróleo.

Já faz quase 10 anos que eu trabalhei em uma fábrica de ração para cães e gatos, cujo nome não vou dizer, mas é da família de um político que fala engraçado, fez muitas coisas com concreto próprio e é um dos convidados de honra da Interpol. Eu não trabalhava exatamente na fábrica, mas em um escritório na capital (minha época Berriner – vergonha pelo termo). Na época eu gostava de lá: galera jovem, legal, cheia de vontade, muitos colegas de profissão e, inclusive, de faculdade, o que me fazia pensar que sabíamos o que estávamos fazendo. Eles tinham até um esquema maneiro e descolado de cumprir as horas da semana (que eram 44, como se fossem trabalhar também no sábado, mas só durante os cinco dias habituais): ficavam meia hora a mais de segunda à quinta, para poderem sair às 16:03 na sexta e, assim, fugir do inferno em forma de trânsito em que esse dia transforma a cidade. Tudo bem que eles sempre ficavam bem mais do que essa meia hora (normalmente de uma hora e meia a duas), e quase nunca saiam antes das 17:00 na sexta, mas era um plano cool. Acresce que a empresa tinha a política da casual Friday, então a gente praticamente se sentia trabalhando na Google, ainda mais quando os vizinhos de andar, uma empresa de informática, eram todos sisudos e formais.

Pessoalmente, eu não participava dessa flexibilidade simonebilesística (na época, daianedossantosística) deles. Estudava à noite, então não poderia me dar ao luxo de sair um pouquinho depois, marcando meu dedinho no ponto rigorosamente às 18:03 (esses três minutos são fruto das quatro horas do sábado diluídas em 48 minutos a mais por dia – entrávamos às 8:15, em vez de 9:00),  geralmente sob olhares um pouco tortos que só faltavam dizer “Mas já tá indo?!”, mas com aquela entonação de “Quisera eu ir também…” Não chegava a me prejudicar, primeiro porque meu serviço estava feito, ou em um ponto em que terminar no dia seguinte não atrasava a vida de mais ninguém, segundo porque acho que a galera realmente entendia que eu tinha que ir estudar (não foram tão compreensíveis quando estive de férias nas aulas). Em terceiro, e essa é a parte legal, ou pelo menos curiosa, porque, quando eles finalmente iam embora um pouco mais cedo na sexta, e lá ficava eu para trás, despediam-se de mim quase com um “coitado, olha ele preso aí…”, com um misto de pena e superioridade que os anestesiava da ideia de que durante a semana inteira eu só trabalhei durante as horas por que seria pago no quinto dia útil, enquanto aquelas duas horas que eram para ser só meia, mais a prorrogação da sexta, cairiam no limbo de uma planilha de ponto que era editada no RH antes de ser assinada, zerando qualquer pagamento de horas extras ou banco de horas.

Mas era uma galera divertida, juro. Várias vezes nos perdíamos no tempo de almoço com conversas e risos, para voltar correndo após extrapolar os quinze minutos de tolerância da hora que tínhamos. Nessas, o RH não editava a planilha, e precisávamos pedir aos superiores imediatos para abonarem o atraso e não descontá-lo do salário, e eles normalmente atendiam, até porque estavam lá no almoço com a gente, fora que sabiam como esse atraso era mais do que compensado no fim do dia (não por mim, mas acho que me beneficiei do sistema nessa). E, claro, eles eram gente boa!

Aprendi várias coisas com o pessoal lá durante aquele tempo, todas ensinadas com a maior boa vontade do mundo. Se hoje eu gosto muito de Excel e sei me virar com planilhas e fórmulas, foram meu serviço e a equipe com que trabalhava que me ensinaram. O pessoal do marketing me explicava várias ações de mercado que faziam, o designer terceirizado me ensinou como apontar lápis com estilete, aprendi mais sobre comportamento de cães e gatos e de seus donos do que na faculdade, entre várias outras coisas.

Particularmente, uma dessas transmissões de conhecimento me marcou: a diferenciação entre desconto financeiro e desconto bonificado. Não cheguei a cursar a faculdade de economia até comprovar se os conceitos estavam rigorosamente definidos na matemática financeira, mas serviam para o andamento da rotina do escritório. Se um cliente comprasse 100 sacos de ração e ganhasse um desconto de 10%, o natural é se pensar que ele pagaria 90 sacos, levando os 100, e eu também pensava assim. Aí foi-me explicado que eu estava pensando em desconto financeiro, e que a empresa costumava aplicar o desconto bonificado: o cliente compra 100 sacos, e ganha 10% de bônus, levando 110 enquanto paga pelos 100. Eu sabia que o primeiro instinto de que dava no mesmo estava errado, mas antes que eu pudesse fazer as contas já me explicaram a matemática por trás, tamanha didática empresarial havia ali: supondo que cada saco custasse R$100,00, no desconto financeiro se pagava R$90,00/saco, enquanto no desconto bonificado o saco saía por R$90,90; no financeiro, a empresa recebia R$9.000,00 de pagamento, enquanto no bonificado o faturamento subia para R$10.000,00.

Embora eu normalmente me considere bastante esperto, a verdade é que tenho bastante dificuldade em entender coisas que as outras pessoas aceitam como óbvias, e acabo precisando criar um modelo didático, muitas vezes for dummies, para me explicar. Nesse caso dos descontos, veio à mente a estória: “O cliente acha que pagar o preço cheio tá muito caro, mas como eu não posso abrir mão de receber aquele montante, prefiro dar a ele mais um tanto de produto em vez de diminuir o valor. Afinal, produto eu tenho bastante, mas meus credores só aceitam dinheiro. Eu fico feliz por receber mais, e o cliente fica feliz com a ideia de que, por aquele mesmo preço, ele leva mais produto.” É provável até que eu tenha enunciado o modelo em voz alta para meu tutor no momento, para provar que entendi. Mas não lembro.

Esse conhecimento ficou comigo, mesmo nunca mais sendo usado para fins profissionais, vez ou outra sendo lembrado quando via alguma promoção no supermercado, até que, quase uma década de sedimentação depois, finalmente consegui aplicá-lo para lubrificar o entendimento da mecânica dos horários daquela empresa, e extrapolar para várias empresas que sei que agem do mesmo jeito. O diretor, julgando que o que pagava aos funcionários era muito caro (mesmo sendo merreca quando comparado aos mesmos cargos em empresas de outros ramos, pelo menos na época – será que era por isso que contratavam tantos veterinários, e não administradores e economistas?), o diretor poderia se negar a honrar o contrato, demitindo. O funcionário, precisando do dinheiro acordado, aceita aplicar o desconto bonificado sobre seu trabalho, seu tempo dedicado à empresa, gerando horas extras não remuneradas. Na estorinha, “o cliente empregador fica feliz por levar mais produto mão-de-obra pelo mesmo preço, e eu não recebo menos como se tivesse dado o desconto financeiro para ele”.

“Mas e o desconto do atraso na hora do almoço?” Ué, independente da promoção, se você recebesse um saco de ração a menos não iria reclamar e querer pagar menos?!

André

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