Aniversário pessoal e intransferível

Sempre fui contra criança soprar velinha em aniversário alheio, geralmente de pessoas mais velhas.

Vai que a comemoração seja um ritual, um culto à vida de quem sobreviveu mais um ano. O cântico, as palmas, os votos, o pedido, as velas, tudo disposto num sistema organizado para canalizar aquela energia em uma chama que, ao ser assoprada, dá mais vida a quem está disposto a sacrificar seu fôlego e a maior parte do bolo à sua frente. Aí vem uma ranhenta atravessar todo o rito e parasitar o elixir? Nunca deixei. Nem a sobrinhada. E sempre olhei feio quando deixavam.

Já pensou é essa a razão de crianças terem uma saúde tão melhor que idosos? As pessoas ficam mais velhas e começam a não ligar tanto para aniversários, escolhem não festejar, ou o fazem só para cumprir tabela, aí um dia colocam os netos na frente da pira para evitar a choradeira e pronto! Começam a definhar, enquanto as criaturinhas vicejam com celebrações anuais, semestrais e mensais, além de chupinharem o momento dos pais e avós, isso quando não são desinibidas ou estimuladas a fazer isso com terceiros. Não, nunca deixei.

Se tem alguém que merece comemorações intermediárias (trimestrais seriam ótimas!) é o vô Antônio, com seus 93 e que sempre faz questão das honras mesmo com o mundo focado no réveillon. Um transformador, por favor, para que toda a energia cinética das palmas, sonora do pique-pique, luminosa da vela e calórica do bolo se converta em energia vital com perdas mínimas no sistema!

Claro, se toda essa visão pagã do aniversário não for assim, eu não deixo do mesmo jeito; é bom pro caráter a criança aprender que existe a hora dela, e a hora dos outros.

André

Reflexões Fezenistas V – paraíso anunciado

Arrisco-me a falhar como o Quincas Borba quando tentou expandir o Humanitismo de filosofia para religião, mas… Faça-se a anunciação!

“A privada é o Céu do Fezenismo.”

Vejam bem: o ato de cagar é o ponto máximo do Fezenismo, a razão de toda a existência da escola. Ele é tão sublime que chega a ser sagrado. A cagada é a comunhão do ser com o Fezenismo. “Mas e o Céu?”, perguntam os iniciados. Em verdade vos digo, na privada todas as merdas são iguais: não importa se você comeu caviar ou churrasquinho grego, tomou champanhe ou o suco que inteira o passe que paga o churrasquinho, lá dentro todos são merdificados para ascender para baixo juntos.

“Ah, mas caga-se em outros lugares, no mato, nas calças…”. Sim, mas quando tudo dá certo, é para a privada que as almas vão. É o prêmio da boa cagada, tal qual não se duvida do inferno em que uma borrada incontinente nos mete.

As diferenças de volume, consistência e cor são irrelevantes; tudo é merda. Assim como as condições do depósito: mesmo com dor e urgência, a sensação continua sendo tão libertadora quanto a abertura de espaço para mais rodízio.

Tudo é merda, e a cagada alivia.

André

Sedimento super premium

Tem coisas que só passam a ter valor depois de bem sedimentadas no tempo. Como petróleo.

Já faz quase 10 anos que eu trabalhei em uma fábrica de ração para cães e gatos, cujo nome não vou dizer, mas é da família de um político que fala engraçado, fez muitas coisas com concreto próprio e é um dos convidados de honra da Interpol. Eu não trabalhava exatamente na fábrica, mas em um escritório na capital (minha época Berriner – vergonha pelo termo). Na época eu gostava de lá: galera jovem, legal, cheia de vontade, muitos colegas de profissão e, inclusive, de faculdade, o que me fazia pensar que sabíamos o que estávamos fazendo. Eles tinham até um esquema maneiro e descolado de cumprir as horas da semana (que eram 44, como se fossem trabalhar também no sábado, mas só durante os cinco dias habituais): ficavam meia hora a mais de segunda à quinta, para poderem sair às 16:03 na sexta e, assim, fugir do inferno em forma de trânsito em que esse dia transforma a cidade. Tudo bem que eles sempre ficavam bem mais do que essa meia hora (normalmente de uma hora e meia a duas), e quase nunca saiam antes das 17:00 na sexta, mas era um plano cool. Acresce que a empresa tinha a política da casual Friday, então a gente praticamente se sentia trabalhando na Google, ainda mais quando os vizinhos de andar, uma empresa de informática, eram todos sisudos e formais.

Pessoalmente, eu não participava dessa flexibilidade simonebilesística (na época, daianedossantosística) deles. Estudava à noite, então não poderia me dar ao luxo de sair um pouquinho depois, marcando meu dedinho no ponto rigorosamente às 18:03 (esses três minutos são fruto das quatro horas do sábado diluídas em 48 minutos a mais por dia – entrávamos às 8:15, em vez de 9:00),  geralmente sob olhares um pouco tortos que só faltavam dizer “Mas já tá indo?!”, mas com aquela entonação de “Quisera eu ir também…” Não chegava a me prejudicar, primeiro porque meu serviço estava feito, ou em um ponto em que terminar no dia seguinte não atrasava a vida de mais ninguém, segundo porque acho que a galera realmente entendia que eu tinha que ir estudar (não foram tão compreensíveis quando estive de férias nas aulas). Em terceiro, e essa é a parte legal, ou pelo menos curiosa, porque, quando eles finalmente iam embora um pouco mais cedo na sexta, e lá ficava eu para trás, despediam-se de mim quase com um “coitado, olha ele preso aí…”, com um misto de pena e superioridade que os anestesiava da ideia de que durante a semana inteira eu só trabalhei durante as horas por que seria pago no quinto dia útil, enquanto aquelas duas horas que eram para ser só meia, mais a prorrogação da sexta, cairiam no limbo de uma planilha de ponto que era editada no RH antes de ser assinada, zerando qualquer pagamento de horas extras ou banco de horas.

Mas era uma galera divertida, juro. Várias vezes nos perdíamos no tempo de almoço com conversas e risos, para voltar correndo após extrapolar os quinze minutos de tolerância da hora que tínhamos. Nessas, o RH não editava a planilha, e precisávamos pedir aos superiores imediatos para abonarem o atraso e não descontá-lo do salário, e eles normalmente atendiam, até porque estavam lá no almoço com a gente, fora que sabiam como esse atraso era mais do que compensado no fim do dia (não por mim, mas acho que me beneficiei do sistema nessa). E, claro, eles eram gente boa!

Aprendi várias coisas com o pessoal lá durante aquele tempo, todas ensinadas com a maior boa vontade do mundo. Se hoje eu gosto muito de Excel e sei me virar com planilhas e fórmulas, foram meu serviço e a equipe com que trabalhava que me ensinaram. O pessoal do marketing me explicava várias ações de mercado que faziam, o designer terceirizado me ensinou como apontar lápis com estilete, aprendi mais sobre comportamento de cães e gatos e de seus donos do que na faculdade, entre várias outras coisas.

Particularmente, uma dessas transmissões de conhecimento me marcou: a diferenciação entre desconto financeiro e desconto bonificado. Não cheguei a cursar a faculdade de economia até comprovar se os conceitos estavam rigorosamente definidos na matemática financeira, mas serviam para o andamento da rotina do escritório. Se um cliente comprasse 100 sacos de ração e ganhasse um desconto de 10%, o natural é se pensar que ele pagaria 90 sacos, levando os 100, e eu também pensava assim. Aí foi-me explicado que eu estava pensando em desconto financeiro, e que a empresa costumava aplicar o desconto bonificado: o cliente compra 100 sacos, e ganha 10% de bônus, levando 110 enquanto paga pelos 100. Eu sabia que o primeiro instinto de que dava no mesmo estava errado, mas antes que eu pudesse fazer as contas já me explicaram a matemática por trás, tamanha didática empresarial havia ali: supondo que cada saco custasse R$100,00, no desconto financeiro se pagava R$90,00/saco, enquanto no desconto bonificado o saco saía por R$90,90; no financeiro, a empresa recebia R$9.000,00 de pagamento, enquanto no bonificado o faturamento subia para R$10.000,00.

Embora eu normalmente me considere bastante esperto, a verdade é que tenho bastante dificuldade em entender coisas que as outras pessoas aceitam como óbvias, e acabo precisando criar um modelo didático, muitas vezes for dummies, para me explicar. Nesse caso dos descontos, veio à mente a estória: “O cliente acha que pagar o preço cheio tá muito caro, mas como eu não posso abrir mão de receber aquele montante, prefiro dar a ele mais um tanto de produto em vez de diminuir o valor. Afinal, produto eu tenho bastante, mas meus credores só aceitam dinheiro. Eu fico feliz por receber mais, e o cliente fica feliz com a ideia de que, por aquele mesmo preço, ele leva mais produto.” É provável até que eu tenha enunciado o modelo em voz alta para meu tutor no momento, para provar que entendi. Mas não lembro.

Esse conhecimento ficou comigo, mesmo nunca mais sendo usado para fins profissionais, vez ou outra sendo lembrado quando via alguma promoção no supermercado, até que, quase uma década de sedimentação depois, finalmente consegui aplicá-lo para lubrificar o entendimento da mecânica dos horários daquela empresa, e extrapolar para várias empresas que sei que agem do mesmo jeito. O diretor, julgando que o que pagava aos funcionários era muito caro (mesmo sendo merreca quando comparado aos mesmos cargos em empresas de outros ramos, pelo menos na época – será que era por isso que contratavam tantos veterinários, e não administradores e economistas?), o diretor poderia se negar a honrar o contrato, demitindo. O funcionário, precisando do dinheiro acordado, aceita aplicar o desconto bonificado sobre seu trabalho, seu tempo dedicado à empresa, gerando horas extras não remuneradas. Na estorinha, “o cliente empregador fica feliz por levar mais produto mão-de-obra pelo mesmo preço, e eu não recebo menos como se tivesse dado o desconto financeiro para ele”.

“Mas e o desconto do atraso na hora do almoço?” Ué, independente da promoção, se você recebesse um saco de ração a menos não iria reclamar e querer pagar menos?!

André

Reflexões Fezenistas IV – Entender-se por gente

Desde que eu me entendo por gente ouço essa expressão, “desde que eu me entendo por gente”. É uma daquelas definições de tempo indefinidas, que são um prato cheio para o tal do Present Perfect, para quem estudou formalmente inglês, mas não dizem muito sobre a quantidade de tempo acumulada por não terem um começo preciso. Em resumo, trata-se de um “faz muito tempo” modelado com uma carga de experiências pessoais e saudosismo: não serve como ligante nos parágrafos de uma dissertação de escola, mas funciona bem para chamar a atenção em desabafos e conversas de bar.

Mas, e se fôssemos tentar definir o momento de se entender por gente? Claro, ele é tão variável quanto o número de gente que se entendeu, e nem quero entrar no assunto psicológico e neurológico de quando as memórias de longo prazo se estabelecem, com que idade temos consciência dos nossos atos e tantos outros parâmetros técnicos que interessam aos estudiosos profissionais dessas áreas. Mas e se propuséssemos algo palpável ao público leigo, algum marco familiar, corriqueiro e ordinário, quiçá pouco nobre a muitos?

Minha proposta é a seguinte: a sua lembrança mais antiga de você limpando a própria bunda.

Argumento: limpar-se após uma cagada é a primeira manifestação de autonomia que uma pessoa pode demonstrar ao mesmo tempo em que lida com as consequências diretamente envolvidas no processo. Antes, ela cagava (o que por si só é sempre um feito), mas era outra pessoa que fazia o serviço inglório de trocar a fralda ou de se deparar com uma bunda suja virada para o alto, no topo de um ser dobrado ao meio que aguarda com uma paciência que nunca aparece quando se está em uma sala de espera ou de visita em alguma casa.

Dificilmente esse ser pode ser considerado gente, assim, em uma condição de submissão tão dependente. Mas quando essa pessoinha se torna capaz de manusear o papel de sua vida, adquire imenso poder e, consequentemente, responsabilidades. Primeiro, ela para de depender do tempo de terceiros, não precisando mais se dobrar enquanto outros terminam seus almoços para ver se se dignificam a demonstrar a boa vontade de libertá-la para seus demais afazeres.

Segundo, a criança (assumindo que esse aprendizado ocorra ainda na infância, mas pode ser que não, claro) aprende de forma empírica o conceito de controle de qualidade: pegou papel, limpou, papel sujo, pega outro papel e repete o processo; limpou, papel limpo, missão cumprida. Não te ensinam essa noção de procedimento operacional padronizado nas aulas de administração de forma tão clara.

Em terceiro vem o desenvolvimento da credibilidade. No início, as pessoas que já se entendem por gente vão querer conferir o serviço da pré-gente, mas estejam certos de que elas não vão estender essa fiscalização além do mínimo necessário para atestar a autonomia. Nada mais natural, é um ganha-ganha com liberdade para os dois lados. Uns podem até se ater um pouco na questão do rendimento e da ecologia do processo (quantidade de papel usada), nada que uma ou duas demonstrações de que economia porca gera mais retrabalho no futuro não resolvam.

Por fim, o pequeno indivíduo aprende a responsabilidade do peso de sua assinatura. Se trabalhar mal, a falha pode transparecer, e ele arcará com os efeitos sociais e profissionais de sua negligência. Saberá em pouco tempo que não adianta culpar quem quer que o tenha liberado: é como um profissional diplomado que quer responsabilizar sua instituição formadora, não dá mais, ela era responsável por você até você querer e provar que podia labutar sem ela. E uma calça da escolinha sem uma assinatura marrom é garantia de felicidade entre as crianças, acreditem.

Certamente há mais benefícios na proclamação de independência bundística, mas não adianta alongar suas citações quando o foco é justificar que, antes dela, não podemos ser considerados propriamente gente. Quem dirá, então, entender-se como uma? Se convenci alguém até aqui, talvez estejam a se perguntar quando foi que cruzaram essa linha histórica, e lhes digo que não se preocupem com isso. A proposta é que vocês se entendem por gente após a lembrança mais antiga de vocês limpando a própria bunda, certo?

Não precisa ser a primeira, ou a segunda, ou a décima. Mas de alguma lá atrás vocês se recordam, e muito provavelmente qualquer ato que queiram enfatizar em um diálogo como sabido “desde que vocês se entendem por gente” deve ser posterior a isso, e deve, ainda, demandar mais autonomia que isso, para se gabarem no colóquio. Então, relaxem e se resignem daquelas imagens, quase em terceira pessoa, que tinham de alguma travessura da tenra infância; vocês ainda não se entendiam por gente.

André

Reflexões Fezenistas III – Taoísmo aplicado ao Fezenismo

Conta-se que, na China antiga, um nobre visitou um monge em seu templo à procura de iluminação.

– Mestre, como faço para me disciplinar na leitura?

– Isso é simples, basta que leia no banheiro.

– Mas, mestre, isso é impossível! Como poderia me concentrar na leitura quando já tenho que me concentrar na cagada?

– Ah, mas aí é que está o seu erro. Uma cagada é algo natural, não exige concentração. Você não deve se concentrar em cagar, e sim não se concentrar em não cagar. Leia seus pergaminhos, reflita sobre eles. Quando aprender a se concentrar na leitura como se deve, então não terá atrapalhado o caminho natural da merda.

– … e de quebra ainda me livro da constipação. Mestre, o senhor é um gênio!

E saiu agradecido.

André